terça-feira, 25 de junho de 2013

ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ



Pois Saramago escreveu com maestria (a "redundância" é proposital) sua obra intitulada "Ensaio Sobre a Lucidez", em 2004. Nela, num dia de eleições, a angústia da espera dos cidadãos-servidores-eleitorais se transforma na incredulidade do resultado nas urnas: 70% dos votos em branco. Convocadas novas eleições para dali 8 dias, as urnas revelam 83% de sufrágios em branco.

O que isso significa??? Sem dúvidas, como dito pelo luso, esses votos em branco vieram "desferir um golpe brutal contra a normalidade democrática em que decorria nossa vida individual e colectiva". E a partir disso, o Governo procura entender as razões e o significado desses resultados... Tal como está acontecendo em nosso país há duas semanas.

Uma das questões primordiais é a subjugação do povo pela classe política (ou politiqueira não seria melhor?!). O desdém para com a juventude, conhecida como geração y, geração player, as quais, conectadas online, não se fecham para o cotidiano político, mas possuem uma maior capacidade de tolerância. Porque aprenderam com seus pais e tios o resultado de ações governamentais durante a ditadura militar. Porque vivem num Estado Democrático de Direito (pelo menos formalmente) conquistado, a base de muito sangue derramado, famílias dilaceradas, direitos banidos, garantias suprimidas, cidadãos escondidos, torturados e assassinados.

E, justamente por esse aprendizado, vão além: porque se já conseguiram levar às ruas mais de 750 mil pessoas em 1992, pedindo o impeachment do Presidente Collor, hoje, com o uso infindável da internet e das redes sociais, já movimentaram mais de 1 milhão de pessoas Brasil afora... Por enquanto... Trata-se de um exemplo de civismo ímpar em nossa história.

Me desculpem, mas a festa da cidadania não são as eleições, vez que obrigatórias para os brasileiros entre 18 e 70 anos, mas essa das ruas, onde homens, mulheres, jovens, velhos, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, brancos, negros, índios, ricos, pobres, se movimentam pelas ruas não para atentar contra a segurança do Estado ou contra a estabilidade do sistema, mas dar força, exigir e fazer valer as duas palavras-chave de nossa pátria: ordem e progresso. Para mostrar para o mundo inteiro que aqui não é apenas o país do futebol, do carnaval e das mulheres mais lindas, mas tem um povo com sede de mudança. Um povo que cansou de tantas promessas políticas não cumpridas, que cansou da falta de estrutura e melhores condições para a saúde pública, que cansou de perder seus guris e gurias para o tráfico de drogas, tráfico de pessoas e o consumismo exacerbado em detrimento de uma escola e educação decentes, que cansou de ver tanta corrupção, que não concorda com os altos gastos dos governos e a construção de estádios em cidades sem tradição no futebol para 3 jogos numa copa do mundo mais um amistoso da seleção a cada 2 anos e alguns show's (a exemplo de Manaus, Cuiabá, Brasília), que cansou de se sentir inseguro nas ruas, que não aceita mais Sarney e Calheiros, que não tolera um intolerante como Feliciano, que se sente simbolicamente violentado todos os dias com os problemas sociais e as regalias dos "representantes" do povo, e os R$ 0,20 foi o estopim.

Sim, o Movimento Passe Livre foi o precursor desses protestos e atingiu o objetivo inicial almejado: a manutenção do valor anterior das passagens de ônibus, ou seja, a revogação do aumento de R$ 0,20 na tarifa. Mas o que esse movimento despertou e encorajou milhares e milhares de brasileiros a irem às ruas não foi apenas os R$ 0,20 como quis fazer crer a Rede Globo durante uma semana (por exemplo), até que começaram a surgir inúmeros cartazes entre as multidões dizendo "isso aqui não é SÓ pelos R$ 0,20". Não subestime a capacidade e criatividade do povo brasileiro Sir Bonner.

O PAULO perguntou: quem, de fato, governa??? Pois, desde o afamado "Discurso de Gettysburg", proferido por Lincoln em 1863, o governo é DO POVO, PELO POVO e PARA O POVO. E com as manifestações, fica claro que a classe política atual não é credora de nossa total confiança, porque somos conscientes da transcendente importância de toda e qualquer obrigação governamental: O POVO.

O mais curioso é que, fala-se tanto da juventude nos palanques e púlpitos Brasil afora, principalmente sobre a "alienação" dessa classe ao mundo político, que quando os jovens resolveram deixar o facebook de lado, levantar bandeiras e cartazes, a classe política está com medo. Pessoas nas ruas colocam em xeque a segurança ilusória da classe que tem o poder de representar (e não de mando). E o cômico disso é que o que está acontecendo nas ruas ainda não foi assimilado pela classe política nacional! Basta ouvir a "Voz do Brasil" e assistir entrevistas com políticos para comprovar isso.

E mais, destaque ímpar do movimento é o apartidarismo das manifestações. Não se está em jogo a direito ou a esquerda, ou ainda o (inexistente) centro - aliás, nem mais esquerda, nem mais direita e nem mais o centro, mas apenas o poder -, mas a necessidade de olhar o povo com uma lupa, e não com um caleidoscópio quebrado a partir da Praça dos Três Poderes. O fato de ser uma onda de protestos sem rosto (anonymus), potencializa o medo da classe política, pela ausência de formalidade, pela falta de lideranças identificáveis a fim de colocar os assuntos "em pauta"... Oras! Os assuntos estão na pauta não só do dia-a-dia nas mesas e rodas de bar de todos os Brasileiros, mas nas Casas Legislativas e do Poder Executivo há décadas! Não me venham falar agora em "ouvir a voz das ruas" tchê. Afinal, os políticos não deveriam ser os representantes DO POVO??

Há que se lembrar que não é o título de eleitor que acredita ao cidadão o direito de representação, mas apenas o direito de votar. Pois essa é meramente uma questão formal. Mas nas ruas, a materialidade dos protestos é evidente, tem cor, raça, cheiro, força. Porque marchar por ruas e praças, pela explanada dos ministérios e prefeituras, faz parte indistinta do livre direito de ir, vir e permanecer. E enquanto houver um único Brasileiro na rua, nossa voz não se calará, nossa visão não se turvará, nossa consciência não se embriagará, nossa indignação e nosso protesto não serão apagados, mas estimulados para lutar por um Brasil verdadeiramente melhor, para além dos discursos e promessas.

Chegou a hora do "Inverno Brasileiro", como uma referência a “Primavera Árabe”, de dezembro de 2010, tal como naquelas manifestações revolucionárias contra as tiranias da Líbia, Tunísia, Egito e Síria, principalmente. Mas, diferentemente de lá, aqui ainda estamos dando mais uma chance a classe política de atender nossos anseios sociais, e não os anseios politiqueiros, dominados pelos interesses da tirânica econômica. Afinal de contas, é o povo que deve ser escutado e atendido antes de se atender a economia, não é não Presidenta? E como não está sendo feito o tema de casa, a ordem deve ser restaurada, não nas ruas, mas dentro dos próprios poderes, antros da corrupção, por se deixarem levar e ser comprados, bem como exigir vantagens de grandes empresas ou não, desde que ávidas por lucro.

Não, o povo não se amedronta. Ou melhor, não se deixa amedrontar pelo Leviatã, mesmo diante do discurso já invocado da Lei e Ordem e da Tolerância Zero, pela Presidenta, pelas Polícias Militares (resquício da ditadura militar), por alguns representantes do Ministério Público e pelos interessados em manterem as coisas como estão. Logicamente que o vandalismo é reprovável, assim como o abuso do poder na contenção desses atos protestantes.

Bombas de efeito moral...

300 mil pessoas do Rio.
100 mil pessoas em São Paulo.
35 mil pessoas em Brasília.
20 mil pessoas em Salvador.
18 mil pessoas em Porto Alegre.
6 mil pessoas em Passo Fundo.
7 mil pessoas aqui em Balneário Camboriú.

É chegada "a hora em que descobrimos que sabíamos muito mais do que antes julgávamos"...

E essas são as verdadeiras "bombas de efeito moral". Cada brasileiro(a) na rua protestando contra o status quo do cenário político nacional é uma explosão de indignação e esperança, um tapa de luva na cara daqueles que "ficam atrás da mesa com o cu na mão". Não importa o rincão, o que importa é o movimento.

No princípio era o conflito... Portanto, o conflito é constituinte dessa nossa sociedade. A participação popular deve se fazer valer pelos nossos representantes através dos seus respectivos mandatos eletivos, sob pena de, não os cumprindo com probidade, serem depostos por quem os legitimou.

É bom que se repita: o povo manifestante não está sem vela nem bússola, sem mastro nem remo, mas consciente do seu papel de legitimantes, legitimados e legitimadores.

Por fim, como disse o mago, Saramago: "OS HUMANOS SÃO UNIVERSALMENTE CONHECIDOS COMO OS ÚNICOS ANIMAIS CAPAZES DE MENTIR, SENDO CERTO QUE SE ÀS VEZES O FAZEM POR MEDO, E ÀS VEZES POR INTERESSE, TAMBÉM ÀS VEZES O FAZEM PORQUE PERCEBERAM A TEMPO QUE ESSA ERA A ÚNICA MANEIRA AO SEU ALCANCE DE DEFENDEREM A VERDADE".

Afinal, quais são os valores supremos da democracia?