terça-feira, 11 de setembro de 2012

A cultura que deveria haver por trás das grades

 
LEIAM.
 
Isso é ALTERIDADE...
 
 
A cultura que deveria haver por trás das grades
Escrito por Carmela Grüne, publicado na Revista Continente.
 
 
O tema proposto traz como preocupação a necessidade de  fomentar a expressão da cidadania no cárcere, haja vista a cultura  repressiva demonstrada por grande parte da sociedade, que prefere  isolar, ao invés de incluir. Punir com toda vingança, retribuindo o mal  com o mal.
 
Esse comportamento social faz parte de um processo que, ao longo da  história da humanidade, foi se perpetuando pelas práticas de opressão,  tortura e violência institucionalizadas como mecanismos de correção do  indivíduo, práticas que ainda são consideradas eficazes pela população.
 
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirma: “A sociedade está cada vez  mais individualizada”. Dividida por fronteiras e muros, ela estabelece o  grau de contato com o qual quer enxergar as mazelas sociais, entregando  aos governantes responsabilidades que são coletivas, somente se  interessando pela realidade prisional quando é afetada pelo sistema com  um filho ou alguém próximo que vai preso. A partir desse momento, passam  a indagar por que o Brasil tem a quarta maior população carcerária do  mundo, um sistema prisional superlotado e desumano.
 
Será que estamos mais violentos? Nossas políticas públicas preventivas de combate à drogadição funcionam? Há planejamento familiar? O acesso à justiça é proporcionado de modo adequado?
 
São questões diretamente relacionadas à nossa cultura: 1) prendemos  pessoas como se todas fossem violentas; 2) somos coniventes com a  propaganda ostensiva em horários nobres na televisão, com atletas,  artistas, personalidades, estimulando o consumo de álcool, a droga que  mais mata, no trânsito, porta de outras substâncias mais nocivas; 3)  falta planejamento familiar, os pais são ausentes de suas  responsabilidades e as mães adolescentes não têm estrutura para  enfrentar a maternidade; 4) o acesso à justiça é confundido como  sinônimo de poder judiciário, causando confusão na população, a qual  acredita que a judicialização da vida seja o caminho, a solução adequada  aos conflitos. O que resulta no expressivo número de ações sem  julgamento – detentos sem sentença, há anos. É evidente que isso não faz  justiça.
 
É necessário refletir: quem pratica um crime, geralmente, tem no seu  passado uma história de violência social, familiar, escolar, estatal.  Não podemos tratar com violência aqueles que cometem crimes – estamos  reforçando comportamentos antissociais, deles e nossos.
 
Numa paz armada, em que sabemos que violência gera violência, qual  caminho estamos traçando? Muitas pessoas, quando ouvem falar de algum  tipo de proteção ou benefício concedido aos detentos, encaram de modo  negativo tal atitude, pois foram “educados” para pensar que quem fez  algo errado é um ser perigoso e deve ser isolado.
 
Quando cumprirem a pena, estarão prontos para quê?
 
Promover o diálogo, criar possibilidades de expressão e sinergia entre  as pessoas é uma realidade que precisa existir. Aqui estamos falando no  desenvolvimento do capital humano e social positivo, isto é, em  direcionar potencialidades e capacidades do grupo para o bem comum,  tanto de quem vive no cárcere como de quem olha essa cultura que  transcende as grades.
 
Assim, a sociedade, como um todo, conhecendo a realidade, pelas  histórias de vida, poderá encarar de modo diferente a maneira como age  com as pessoas que, por algum infortúnio, erraram.
 
Quanto maior o número de demandas públicas e a incapacidade do povo em  deliberar a agenda política, mais a sociedade, destaca Norberto Bobbio,  torna-se ingovernável. Isso quer dizer que, sem conhecimento e  consciência coletiva, perpetuamos a cultura repressiva.
 
Quando os meios de comunicação são utilizados como instrumento de  debate, de discussão pública, o significado de fazer parte de uma  comunidade é fortalecido. Desenvolvemos e garantimos direitos  fundamentais pela emancipação de valores sociais, base moral e ética da  convivência sadia.
 
Para termos bons cidadãos, é necessário um investimento forte em  práticas que promovam e enalteçam as capacidades e qualidades de cada  pessoa, refletindo na autoestima, na alteridade, na identificação e  redução do sentimento de nadificação e inexistência social.
 
A cultura se mantém por meio do modo de propagação e significados da  vida. É urgente estimular essa expressão carcerária, advinda de  manifestações como música, dança, poesia, grafite, teatro, artigos  produzidos pelos próprios detentos, pois são formas criativas de  trabalhar com o imaginário social, construir um diálogo  transdisciplinar, fazer com que o cidadão possa compreender melhor a  realidade prisional e o seu papel na mudança de paradigmas dentro da  vida em comunidade.
 
A interlocução do público com o privado deve acontecer, seja pela união  de Ministérios – da Cultura, Justiça, Educação, Saúde – com empresas e  instituições de ensino privadas, para a criação de políticas públicas de  acesso aos meios de comunicação, seja por rádio, internet, blogs e  através de conteúdos devidamente avaliados, para que atinjam o objetivo  proposto: fomentar a “cultura do e no cárcere”, expressão cívica dos detentos.
 
Eles são “gente como a gente”. Artistas, educadores, pessoas cheias de  talentos reprimidos, da infância à vida adulta, por diferentes motivos,  alguns com grande potencial. A maioria, jovens que precisam de  oportunidades para trilhar um caminho longe das drogas, da  criminalidade. Fomentar cultura no sistema prisional é construir um novo  olhar para a questão de como a sociedade trata suas mazelas sociais – e  a arte é um excelente caminho para se fazer justiça e exaltar outra  cultura. Cidadania sem expressão gera opressão.
 
Devemos descobrir um novo continente ou permanecer indiferentes a tudo  que existe por trás das grades. O resultado está logo ali, no futuro.  Faça sua escolha.